Esquecimento do Passado
Rafaela Paes
O artigo de hoje constitui-se mais como um estudo do Livro II, Capítulo VII, questões 392 a 399 do Livro dos Espíritos, que trata sobre o esquecimento do passado, ou seja, das encarnações pretéritas dos ora encarnados.
Questão 392 – Por que o Espírito perde a lembrança do seu passado?
Resposta – O homem não pode nem deve tudo saber; Deus o quer assim em sua sabedoria. Sem o véu que lhe cobre certas coisas, ficaria deslumbrado, como aquele que passa, sem transição, da obscuridade à luz. Pelo esquecimento do passado, ele é mais ele mesmo.
Inicialmente, entende-se que o esquecimento do passado é uma decisão de Deus, para que os encarnados não se tornem deslumbrados com posições de vidas anteriores, o que possibilita que ele viva o presente de forma mais plena.
Questão 393 – De que maneira pode o homem ser responsável por atos e resgatar faltas de que não se lembra? Como pode aproveitar a experiência adquirida nas existências caídas no esquecimento? Conceber-se-ia que as tribulações da vida fossem uma lição para ele, se se lembrasse do que as originou; mas do momento que não se lembra, cada existência é para ele como se fosse a primeira, e está, assim, sempre a recomeçar. Como conciliar isso com a justiça de Deus?
Resposta – A cada nova existência, o homem tem mais inteligência e pode melhor distinguir o bem e o mal. Onde estaria o mérito se ele se lembrasse de todo o passado? Quando o Espírito volta à sua vida primitiva (a vida espírita) toda a sua vida passada se desenrola diante dele; ele vê as faltas que cometeu e que são causa do seu sofrimento, e o que poderia impedir de as cometer. Compreende que a posição que lhe é dada é justa e procura, então, a existência que poderá reparar aquele que vem de se escoar. Procura provas análogas àquelas pelas quais passou, ou lutas que crê adequadas ao seu adiantamento, pedindo aos Espíritos que lhe são superiores para ajuda-lo nessa nova tarefa que empreende, porque sabe que o Espírito que lhe será dado por guia nessa nova existência procurará fazê-lo reparar suas faltas, dando-lhe uma espécie de intuição das que cometeu. Essa mesma intuição é o pensamento, o desejo criminoso que vos vem, frequentemente, e ao qual resistis instintivamente, atribuindo, no mais das vezes, vossa resistência aos princípios que recebestes de vossos pais, enquanto que é a voz da consciência que vos fala, e essa voz é a lembrança do passado; voz que vos adverte para não recairdes nas faltas que já cometestes. O Espírito, entrado nessa nova existência, se suporta essas provas com coragem, e se resiste, eleva-se e ascende na hierarquia dos Espíritos, quando volta entre eles.
Explica, em nota, Kardec:
Se não temos, durante a vida corporal, uma lembrança precisa do que fomos e do que fizemos, de bem ou de mal, nas nossas existências anteriores, temos a intuição, e nossas tendências instintivas são uma reminiscência do nosso passado. Aquela nossa consciência, que é o desejo que abrigamos de não mais cometer as mesmas faltas, nos previne a resistência.
Questão 394 – Nos mundos mais avançados que o nosso, onde os homens não estão premidos por todas as nossas necessidades físicas e nossas enfermidades, eles compreendem que são mais felizes do que nós? A felicidade, em gral é relativa, sentimo-la por comparação com um estado menos venturoso. Visto que, em definitivo, alguns desses mundos, ainda que melhores do que o nosso, não estão no estado de perfeição, os homens que os habitam devem ter seu gênero de motivos de aborrecimentos. Entre nós, o rico, que não tem as angústias das necessidades materiais como o pobre, não tem menos tribulações que tornam sua vida amarga. Ora, eu pergunto se, na sua posição, os habitantes desses mundos não se creem mais infelizes do que nós e não se lamentam de sua sorte, não tendo a lembrança de uma existência anterior para comparação?
Resposta – A isso é preciso dar duas respostas diferentes. Há mundos entre aqueles de que falas, cujos habitantes têm uma lembrança muito clara e muito precisa de suas existências passadas. Esses, tu o compreendes, podem e sabem apreciar a felicidade que Deus lhes permite saborear. Mas existem outros onde os habitantes, como tu o dissestes, colocados em melhores condições do que vós, não têm menos aborrecimentos, infelicidade mesmo; esses não apreciam sua felicidade pelo fato mesmo de que não têm lembrança de um estado ainda mais infeliz. Se eles não a apreciam como homens, apreciam-na como Espíritos.
Mais uma vez Kardec aduz em nota:
Não há, no esquecimento dessas existências passadas, sobretudo naquelas que foram penosas, alguma coisa de providencial e na qual se revela a sabedoria divina? É nos mundos superiores, quando a lembrança das existências infelizes não é mais do que um sonho mau, que elas afloram à memória. Nos mundos inferiores, as infelicidades atuais não seriam agravadas pela lembrança de tudo aquilo que se suportou?
Concluamos daí, então, que tudo que Deus fez está bem feito e não nos cabe criticar-lhe as obras e dizer como deveria regular o Universo.
A lembrança de nossas individualidades anteriores teria inconvenientes muito graves; poderia, em certos casos, nos humilhar extraordinariamente e, em outros, exaltar o nosso orgulho e, por isso mesmo, entravar o nosso livre-arbítrio. Deus nos deu, para nos melhorarmos, o que nos é necessário e nos basta: a voz da consciência e nossas tendências instintivas, privando-nos do que nos poderia prejudicar. Acrescentemos, ainda, que se tivéssemos a lembrança de nossos atos pessoais anteriores, teríamos igualmente dos atos dos outros e esse conhecimento poderia ter os mais deploráveis efeitos sobre as relações sociais. Não havendo sempre motivos para nos glorificarmos do nosso passado, ele é quase sempre feliz quando um véu lhe seja lançado. Isso concorda perfeitamente com a doutrina dos Espíritos sobre os mundos superiores ao nosso. Nesses mundos, onde não reina senão o bem, a lembrança do passado não tem nada de penosa; eis porque sabem aí de sua existência precedente, como nós sabemos o que fizemos na véspera. Quando à estada que fizeram nos mundos inferiores, como dissemos, não é mais que um sonho mau.
As questões prosseguem acerca do tema, mas cabe salientar que até aqui pode-se entender que o esquecimento do passado tem a ver com a questão de não permitir que sejamos regiamente humilhados ou então, que deixemos que o orgulho e vaidade, raízes das maiores mazelas humanas, tomem conta de nós. Se aqui estamos para quitar débitos, não há como saber o que o próximo nos fez no passado, já que sempre, de alguma forma, isso iria influenciar sobremaneira a nossa forma de lidar com ele.
Questão 395 – Podemos ter algumas revelações sobre nossas existências anteriores?
Resposta – Nem sempre. Muitos sabem, entretanto, o que foram e o que fizeram; se lhes fosse permitido dizê-lo abertamente, fariam singulares revelações sobre o passado.
Questão 396 – Certas pessoas creem ter uma vaga lembrança de um passado desconhecido que se lhes apresenta como a imagem fugidia de um sonho que se procura em vão reter. Essa ideia não é uma ilusão?
Resposta – Algumas vezes é real; mas, frequentemente, é uma ilusão contra a qual é preciso se colocar em guarda, porque pode ser o efeito de uma imaginação superexcitada.
Nessas questões, entende-se que muito dificilmente pode-se ter revelações acerca do passado, e quem as têm, não podem falar abertamente sobre o assunto. Além disso, aqueles que creem ter lembranças de seu passado, na maioria das vezes sofrem com ilusões e é preciso que se tenha cuidado com isso.
Questão 397 – Nas existências corporais de uma natureza mais elevada que a nossa, a lembrança das existências anteriores é mais precisa?
Resposta – Sim, à medida que o corpo é menos material, lembra-se melhor. A lembrança do passado é mais clara para aqueles que habitam mundos de uma ordem superior.
Questão 398 – As tendências instintivas do homem, sendo uma reminiscência do seu passado, segue-se que pelo estudo dessas tendências pode conhecer as faltas que cometeu?
Resposta – Sem dúvida, até um certo ponto; mas é preciso ter em conta o progresso que pode ter-se operado no Espírito e as resoluções que tomou no estado errante. A existência atual pode ser muito melhor do que a precedente.
Nessa questão verifica-se que, apesar de nossas tendências mais primitivas poderem ser sinais do passado, muitas vezes o progresso do Espírito já se operou e a existência presente pode ser muito melhor que a anterior, o que leva esse critério a ser falho. Segue a pergunta:
- Pode ser pior? O homem pode cometer em uma existência faltas que não cometeu na precedente?
Isso depende de sua elevação. Se não sabe resistir às provas, ele pode ser arrastado a novas faltas, que são a consequência da posição que escolheu. Mas, em geral, essas faltas acusam mais um estado estacionário que um estado retrógrado, porque o Espírito pode avançar ou parar, mas não recua.
Interessante colocação na continuação da referida questão, onde pode-se aprender que muito dificilmente um Espírito recua, ou seja, tem uma encarnação presente pior do que a anterior, visto que geralmente, a regra é que ele estacione, ou seja, mantenha-se no mesmo grau de evolução, ou avance. Por fim, encontra-se a derradeira questão:
Questão 399 – As vicissitudes da vida corporal, sendo ao mesmo tempo uma expiação pelas faltas passadas e provas para o futuro, segue-se que da natureza dessas vicissitudes pode-se induzir o gênero da existência anterior?
Resposta – Muito frequentemente, pois, cada um é punido por aquilo que pecou; entretanto, não é preciso fazer disso uma regra absoluta. As tendências instintivas são um índice mais certo, porque as provas que o Espírito suporta são tanto pelo futuro como pelo passado.
Por fim, Kardec complementa em nota, resumindo as questões trabalhadas:
Alcançado o termo marcado pela Providência para sua vida errante, o próprio Espírito escolhe as provas às quais quer se submeter para acelerar o seu progresso, quer dizer, o gênero de existência que ele crê mais apropriado para lhe fornecer os meios, e essas provas estão sempre em relação com as faltas que deve expiar. Se triunfa, se ela; se sucumbe, está por recomeçar.
O Espírito goza sempre do seu livre-arbítrio e é em virtude dessa liberdade que, no estado de espírito, escolhe as provas da vida corporal e que, no estado de encarnado, delibera se as cumpre ou não, escolhendo entre o bem e o mal. Denegar ao homem o seu livre-arbítrio, será reduzi-lo à condição de máquina.
Entrando na vida corporal, o Espírito perde momentaneamente a lembrança de suas existências anteriores, como se um véu as ocultasse. Todavia, ele tem algumas vezes uma vaga consciência e elas podem mesmo lhe serem reveladas em certas circunstancias; mas é apenas pela vontade dos Espíritos superiores que o fazem espontaneamente, com um fim útil e jamais para satisfazer uma vã curiosidade.
As existências futuras não podem ser reveladas em nenhum caso, pela razão de que elas dependem da maneira que se cumpra a existência presente e da escolha ulterior do Espírito.
O esquecimento das faltas cometidas não é um obstáculo ao progresso do Espírito, porque, se não tem uma lembrança precisa, o conhecimento que teve no estado errante e o desejo que tomou de as reparar guiam-no pela intuição e lhe dão o pensamento de resistir ao mal. Esse pensamento é a voz da consciência, que é secundada pelos Espíritos que o assistem, se escuta as boas inspirações que sugerem.
Se o homem não conhece os atos que cometeu nas suas existências anteriores, ele pode sempre saber de que gênero de faltas se tornou culpado e qual era seu caráter dominante. Basta estudar-se e pode julgar do que foi, não pelo que é, mas por suas tendências.
As vicissitudes da vida corporal são, ao mesmo, uma expiação pelas faltas do passado e provas para o futuro. Elas nos depuram e nos elevam segundo as suportemos com resignação e sem murmurar.
A natureza das vicissitudes e das provas que suportamos pode, também, nos esclarecer sobre o que fomos e o que fizemos, como neste mundo julgamos os fatos de um culpado pelos castigos que lhe inflige a lei.
Assim, alguém será castigado no seu orgulho pela humilhação de uma existência subalterna; o mau rico e o avaro, pela miséria; o que foi duro para com os outros, pela dureza que suportará; o tirano, pela escravidão; o mau filho, pela ingratidão dos seus filhos; o preguiçoso, por um trabalho forçado, etc.
Por fim, para pensarmos acerca do assunto, fica a frase de Harold Macmillian: “O passado deve ser usado como um trampolim e não como um sofá”.
Vivamos o hoje, sejamos bons hoje, façamos o bem e levemos o amor por onde passarmos... só assim o passado fará sentido e o futuro será luminoso.
Paz a todos!
Comments